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Meu Discurso de Formatura - Prof. Amadeu Bego

Esta seção do site da DE da SBQ tem o objetivo de publicar periodicamente discursos inspiradores de formatura dos membros da SBQ que abordem temáticas ligadas à ciência, tecnologia, educação e, particularmente, ao ensino de química. A proposta deste espaço é, em tempos conturbados e desafiadores, tanto inspirar quanto integrar os membros da divisão por meio de mensagens que avancem, para além do formalismo acadêmico-científico, em direção às interfaces entre ciência, sociedade, educação e arte

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Discurso de Paraninfo proferido na Colação de Grau no dia 18 de fevereiro de 2017 da turma Licenciatura em Química [INSTITUTO DE QUÍMICA – UNESP].

 

Para iniciar meu discurso nesta manhã, gostaria de contar um episódio que aconteceu comigo há algum tempo.

Estava com uma dor de dente terrível que não me deixava comer, beber, dormir, pensar, enfim, que não me deixa viver direito. Procurei, então, minha dentista e apresentei melancolicamente meu caso. Ela fez a análise inicial e prontamente apresentou um diagnóstico: eu estava com uma cárie no terceiro molar que havia se desenvolvido muito e afetado o nervo do dente. Depois de apenas aproximadamente 40 minutos, a dentista já tinha finalizado o tratamento e minha dor de dente havia simplesmente desaparecido.  Fiquei bastante agradecido pelo excelente serviço prestado pela PROFISSIONAL responsável por aliviar meu sofrimento e restabelecer a normalidade de minha saúde bucal. Esse sentimento de gratidão logo se transformou em espanto quando na saída me dirigi à secretária e indaguei sobre o valor da consulta e tratamento.

- São R$ 200,00! Respondeu a doce e elegante secretária.

Pronta e assustadamente, respondi perguntando:

- Apenas essa consulta de hoje ficou tudo isso?

Sem sair de sua postura elegante, a secretária me explicou que aquele valor se referia justamente ao procedimento realizado pela Dentista. Preenchi o cheque inconformado com o valor que considerava abusivo, entreguei à secretária e saí do consultório esbaforindo aos quatro ventos:

- R$ 200,00 em apenas 40 minutos de serviço? Como pode uma coisa dessas?!

Depois de passado algum tempo, passei a refletir com mais calma e muito mais racionalidade sobre o episódio. Várias questões pairavam sobre minha cabeça: Ora, será que tratar uma cárie é algo trivial? Por que será que procurei e confiei em uma profissional especializada para realizar esse serviço? Por que será que depois do procedimento fiquei totalmente satisfeito e sem dor?

Vejam, para tratar uma (entre aspas) "simples cárie", ou seja, atuar com eficiência e excelência, um profissional precisa desenvolver e possuir uma ampla série de habilidades e competências. Por isso, ele passa por um curso superior de aproximadamente 5 anos, acrescidos de mais alguns anos de especialização, dentre outros anos. Um profissional da odontologia está apto a identificar doenças por meio de exames clínicos, radiográficos e laboratoriais e, a partir do diagnóstico, propor o tratamento mais adequado e receitar medicamentos.

Assim, para tratar uma “simples cárie” em questão de minutos, dentistas precisam pensar em muitos aspectos. Vejamos.

O tratamento já começa no momento em que o paciente entra na sala. O dentista analisa o padrão facial, o tipo de musculatura que ele apresenta e os hábitos do paciente que podem criar problemas futuros na restauração. Após isso, deve ser diagnosticada a doença e, então, pensar qual vai ser o tipo de restauração e o que vai ser usado para isso.

Ao iniciar o tratamento propriamente dito, deve ser feita uma anestesia adequada. Depois da anestesia, deve-se controlar a contaminação do local.

Dentistas devem saber usar a sequência correta de brocas e produtos para preparo da área a ser restaurada e também do adesivo que irá segurar a restauração no lugar. Isso é feito por materiais que devem ser usados em uma ordem correta, com um tempo correto e na quantidade adequada.

A resina propriamente dita é colocada em seguida, em incrementos pequenos e nos locais certos.

Depois de colocar a resina, deve ser feita a escultura de forma a deixar o dente o mais natural possível em termos estéticos, mas também deve-se seguir toda uma cartilha para que o dente restaurado tenha um contato ideal com seu antagonista.

Após tudo isso ser feito, o paciente é liberado.

Interessante pensar em retrospectiva, que tudo que descrevi de modo sintético e grosseiro, acontece naqueles poucos minutos de tratamento. No final das contas, penso hoje que o valor cobrado por minha dentista foi justo, em função de tamanho investimento de recursos, de tempo e de estudo que ela precisou despender durante vários anos para desenvolver tanto conhecimento e adquirir tantas habilidades técnicas e científicas.

Bom, nesse momento você já deve estar se perguntando: por que será que esse professor maluco está contando esse episódio e fazendo todas essas reflexões sobre dor de dente e dentista?!

Pois bem, explicar-me-ei.

Nesta manhã, fui agraciado por essa genuína homenagem de ser o paraninfo da turma de Licenciatura do Instituto de Química da Unesp de Araraquara. Hoje cada um desses estudantes, após cinco (talvez seis, sete ou até oito) árduos anos, irão receber um título: LICENCIADO em QUÍMICA.

A licenciatura plena é um grau acadêmico concedido por uma Instituição de Ensino Superior que habilita indivíduos ao exercício do magistério. Cada estudante sairá daqui nesta manhã com a licença para exercer uma profissão: a profissão de professor. O Estado, por meio dessa instituição reconhecida e legitimada socialmente, autoriza-os a entrarem em uma sala de aula e exercerem o ofício de ensinar pessoas.

Vejam, um dentista é responsável pela saúde bucal de uma pessoa e necessita, conforme discuti anteriormente, de uma ampla série de habilidades e competências para atuar de forma eficiente e profissional.

Pois bem, metaforicamente, podemos afirmar que um professor em sala de aula no exercício de seu ofício é responsável por 32 dentes permanentes, pertencentes a uma pessoa altamente complexa.

Pessoa que, de acordo com Freud, possui uma personalidade composta por estruturas e que possui conteúdos mentais com distintas qualidades – inconsciente, consciente e pré-consciente. Pessoa com pulsões instintivas e com uma sexualidade em desenvolvimento que interatuam constantemente em seu comportamento e que na sala de aula atuam no aprendizado.

Pessoa que, segundo Piaget, desenvolve, progressivamente e em estágios de maturação, mecanismos psicológicos como a abstração empírica e reflexionante, a generalização indutiva e construtiva, dentre outros, que são constituintes dos diferentes patamares do conhecimento e, por isso, devem ser expostas aos conteúdos escolares em níveis adequados de complexidade.

Pessoa que, de acordo com Vygotsky, tem natureza social e que, por isso, não traz, ao nascer, o conjunto de aptidões e capacidades que vai apresentar na vida adulta, mas, antes, diferente dos outros animais, seu desenvolvimento necessita de um processo, socialmente mediado, de aprendizagem da cultura historicamente construída.

Pessoa que, para Bourdieu, está inserida em uma sociedade capitalista e, por isso, apresenta determinado perfil socioeconômico que influencia a aquisição de um certo capital simbólico. Pessoa que, nesse contexto, desenvolve determinado habitus que se traduz em estilo de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos, incluindo, disposição para aprender e se relacionar com o conhecimento escolar socialmente estabelecido.

Ampliando essa metáfora que estou utilizando, o professor licenciado será responsável por, sendo razoável, aproximadamente 960 dentes, pertencentes a 30 pessoas altamente complexas, todas dentro de uma sala de aula.

Sendo ainda razoável, no exercício de seu ofício, o professor será responsável por 11.520 dentes, pertencentes a 360 pessoas altamente complexas, todas reunidas em uma determinada escola. Pessoas com histórias de vida, valores, gostos, desejos, sonhos, angústias e personalidades diferentes, que se comportam e se relacionam de maneira distintas, fazendo com que cada sala de aula seja singular.

Por todas essas características, esse ofício, assim como o ofício de dentista, precisa ser exercido por um profissional altamente capacitado com conhecimentos, habilidades e disposições específicas da profissão. Nesse contexto, enxergamos o professor como um profissional crítico, reflexivo, político e pesquisador de sua prática. Um profissional que necessita de saberes psicopedagógicos, saberes científicos, saberes experienciais, além de compreensão política sobre seu papel social e sobre sua profissão.

Em detrimento dessa concepção profunda e complexa sobre o trabalho docente que a comunidade acadêmica vem desenvolvendo nas últimas décadas, ainda é forte e vigente no ideário social a concepção de que o ofício de professor pode ser exercido por qualquer pessoa, basta que tenha vocação e dom para ensinar. Ideário que, infelizmente, é atualmente reiterado por um governo ilegítimo através do reconhecimento legal do dito “notório saber”. Infeliz também, é constatar que nossa nação, sobretudo nosso estado de São Paulo, várias vezes vem dando exemplos de desvalorização da carreira, seja nas lastimáveis condições de trabalho, seja na ausência de planos de carreira atraentes, na remuneração indigna ou, ainda, no fechamento de escolas.

Nas atuais formações societárias modernas vários ofícios necessitam de uma LICENÇA OFICIAL para seu exercício. Essa exigência é feita em função da segurança que a certificação fornece e da necessidade de proteção contra os riscos e os danos que o exercício do ofício por uma pessoa despreparada pode causar à comunidade. Por exemplo, a licença legal conferida pelo CRQ nos garante que o profissional da química, ao contrário de uma pessoa desabilitada, não irá colocar a vida de várias pessoas em risco e nem provocar prejuízos ambientais por incompetência técnica e científica.

Nesse sentido, o exercício das atividades de um dentista ou de um médico por uma pessoa desabilitada pode custar a vida de um paciente. O exercício das atividades de um advogado por uma pessoa desabilitada pode custar a liberdade de um inocente. O exercício das atividades de um piloto por uma pessoa desabilitada pode custar a vida de vários passageiros.

No ideário social que citei anteriormente, muitas pessoas acreditam que o exercício das atividades de um professor não coloca a vida de nenhuma pessoa em risco. Afinal, um bom ou um mau professor não provoca a morte de nenhum estudante.

Minha resposta a essa provocação é: SIM. Sim, um mau professor não coloca a vida de nenhuma criança ou adolescente em risco. Porém, minha resposta tem um complemento: A CURTÍSSIMO PRAZO. Sim, uma aula ruim não mata ninguém. Não imediatamente. Mas, sutil e lentamente, aulas ruins matam a curiosidade, abortam a sede pelo saber, lesionam o senso crítico, assassinam a formação cidadã dos estudantes. Sim, meus amigos, os efeitos da atuação de professores despreparados e sem condições descentes de trabalho são sempre a longo prazo e, por isso, igualmente devastadores.

É no espaço de uma geração que verificamos a morte intelectual de milhões de estudantes brasileiros. Como resultado do descaso com a educação é que vemos agora nosso país ficar na SEXAGÉSIMA TERCEIRA posição em ciências, na QUINQUAGÉSIMA NONA posição em leitura e na SEXAGÉSIMA SEXTA colocação em matemática na avaliação do PISA. De acordo com os dados do PISA divulgados em 2016, em uma escala de proficiência que vai de 1 a 6, mais de 80%, isso mesmo, mais de 80% dos estudantes brasileiros não atingiram a nota 2.

Segundo dados do Censo Escolar de 2015, nas escolas públicas do Brasil, 200.816 professores, isso mesmo, mais de 200.000 professores dão aulas em disciplinas nas quais não são formados. O exercício do ofício de professor por apenas vocacionados ou por pessoas de notório saber em um contexto de precárias condições de trabalho tem gerado uma sociedade com índices assustadores de analfabetismo funcional. Uma sociedade formada por pessoas que não compreendem os rudimentos e os princípios das Ciências, que são fundamentais para o exercício da cidadania.

Em uma pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, mais de 90% dos entrevistados não se lembraram de nenhum nome de algum cientista brasileiro importante. Outras pesquisas indicam que cerca de 60% dos adultos não sabem que o último dinossauro morreu antes que o primeiro ser humano aparecesse; 75% não sabem que os antibióticos matam as bactérias, mas não matam os vírus; 57% não sabem que o elétron é menor que o átomo. Cerca de metade dos adultos não sabem que a Terra gira em torno do Sol e leva um ano para fazer a volta, e nem mesmo que o Sol é uma estrela.

Formamos um contingente anual de indivíduos que não sabem o que é e o que provoca o aquecimento global (problema que não é só nosso atualmente), não sabe o que são os gases do efeito estufa que estão provocando mudanças climáticas sem precedentes na história de nossa espécie.

Enfim, é preciso reafirmar aqui algo bastante óbvio: uma sociedade só evolui e prospera por meio da educação. Óbvio também é a afirmação de que não há educação de qualidade se não houver profissionais da educação bem formados e valorizados econômica e socialmente, para atuar com eficiência nas escolas.

Precisamos valorizar os professores e reconhecer seu ofício como uma PROFISSÃO, com P maiúsculo. Isso significa que precisamos nos mobilizar politicamente para exigir de nossos governantes as políticas públicas necessárias para a valorização do magistério.

Uma das ações importantes envolve formar mais e melhores professores. Formar profissionais competentes, críticos e com consciência política. Profissionais que atuam com eficiência, mas que também sejam críticos e não aceitem os desmandos de governos AUTORITÁRIOS e CORRUPTOS.

Já passou a hora de darmos juntos, em uníssono, nosso brado forte retumbante: Mais Freires, mais Savianis, mais Anísios Teixeiras. Mais educação. Mais ética. Mais cidadania. Mais professores!

Fico extremamente feliz em saber que, nesta manhã aqui, estamos licenciando profissionais extremamente competentes que ralaram muito durante esses 5 exigentes anos. Independentemente do caminho que cada um e cada uma resolverá trilhar, saibam que vocês sairão daqui com uma licença para entrar nas salas de aula e exercer a profissão de professor. 

Estão sendo licenciados aqui hoje profissionais que sabem e reconhecem a beleza e importância da profissão docente.

Sabem, assim como eu, que ser professor é trabalhar com seres humanos. Ser professor é ter a possibilidade ímpar de participar e transformar a VIDA de pessoas. Ao contrário do que pensam os adeptos da onda reacionária e acientífica do “Escola Sem Partido”, ser professor é sim ajudar a compor dialeticamente de forma crítica e reflexiva a personalidade, a inteligência e a visão de mundo das pessoas.

É uma grande honra e fico muito feliz em reconhecer que, daquilo que vocês ao longo desses anos se tornaram, eu ajudei a compor certa parte. Fico igualmente feliz de ter feito parte da história de cada um e cada uma de vocês.

Saibam que na vida não importa o quanto caminhamos, mas as pessoas que encontramos pelo caminho. Sou grato à vida por os ter colocado em meu caminho e por ter a oportunidade de trocarmos experiências, conhecimentos, sonhos e esperanças. Esses momentos me ajudaram a compor o que sou hoje enquanto educador e pessoa. Como afirma nosso grande patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire: "Quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender".

Desejo todo sucesso e felicidade para vocês nessa nova etapa de vida. Saibam que sempre podem contar comigo, pois, como diria o poeta, estar junto não é estar perto, mas estar dentro. E eu carrego a todos e todas em meu coração.

Sucesso e felicidade nesta nova etapa!!!

Prof. Dr. Amadeu Moura Bego

Membro da DE desde 2006