O MÉDICO GEORGE THOMSON (1619 – 1677) E OS PRIMEIROS DESENVOLVIMENTOS DO CONCEITO DE GÁS.

Paulo Alves Porto (PQ).

Depto. de Físico-Química – Instituto de Química de São Carlos – Universidade de São Paulo.

palavras-chaves: gás, George Thomson, química do século XVII.


A palavra gás foi criada pelo “filósofo químico” Joan Baptista Van Helmont (1579 – 1644) para nomear um conceito de fundamental importância em seu sistema médico-químico. O conceito helmontiano de gás era bastante amplo, visando explicar não apenas fenômenos meteorológicos e de transformações da matéria em geral, mas também uma variedade de fenômenos fisiológicos e patológicos. Após seu surgimento nesse contexto médico, o conceito de gás foi adotado primeiramente pelos médicos que se declararam seguidores de Van Helmont. Neste trabalho, vamos analisar qual foi a recepção da idéia original de gás entre esses médicos helmontianos, enfocando particularmente a figura do inglês George Thomson (1619 – 1677). Para a realização de nossa pesquisa, recorremos a trabalhos originais de Thomson, publicados entre 1665 e 1675, além de outras obras do mesmo período.

A medicina helmontiana obteve relativo sucesso no século XVII, particularmente na Inglaterra. Os seguidores de Paracelso e Van Helmont clamavam por uma nova medicina e por uma completa reforma de seu ensino, impulsionados pela emergência de novas visões acerca da própria natureza do conhecimento. Conseqüentemente, despertaram a animosidade dos médicos tradicionais e das universidades. Na Inglaterra, médicos helmontianos tentaram fundar uma “Sociedade de Médicos Químicos”, em oposição ao tradicional Royal College of Physicians. Os dois grupos divergiam acerca de vários pontos: os conceitos de doença e cura, o modo de preparar remédios, os tratamentos que poderiam ser dispensados aos pacientes, etc. Havia ainda um debate acerca das teorias químicas subjacentes a cada sistema, no qual tomaram parte também os partidários do emergente “mecanicismo”. Cada posição podia receber diferentes interpretações, e o cenário resultante era um mosaico de teorias e conceitos que ainda hoje aguardam que seus detalhes sejam mais profundamente analisados. Os primeiros desenvolvimentos do conceito de gás se nos apresentam como um interessante estudo de caso da efervescência de idéias sobre a matéria nesse período.

Alguns médicos helmontianos, como foi o caso de Thomson, adotaram o conceito de gás, originalmente proposto por Van Helmont. Thomson estava particularmente interessado em estudar a peste, uma doença acerca de cujas causas não havia, na época, um consenso. Em seu livro Loimotomia, escrito logo após a epidemia de peste bubônica que grassou em Londres em 1665, Thomson afirmou que a “causa material” da peste seria um gás. A seguinte citação ilustra as idéias do médico inglês sobre esse ponto:

No que tange à causa material [da peste], ela é um Gás venenoso, ou espírito selvagem, produzido internamente a partir de alguma matéria degenerada no interior do corpo, ou recebido exteriormente a partir de algumas exalações putrefatas nocivas contidas nos poros do ar ... Suponho que eu possa muito bem comparar este odor mortífero ao Gás ou fumo de enxofre ... [ref. 1, pp. 8 - 9.]

Em outra obra, Aimatiasis, a palavra gás aparece em dois tipos de contextos. O primeiro é a identificação do archeus humano (isto é, um “espírito” existente no organismo o qual regeria a vida e, por isso mesmo, seria também a sede de todos os processos mórbidos) como gás vital:

Segue-se, necessariamente,…que…quaisquer doenças brotam da mesma raiz (a causa imediata da nossa saúde), o archeus privado, nublado, perturbado, agitado com diversas paixões, fúria, medo, etc…Não é possível que uma doença possa situar-se em qualquer outro lugar que não este Gás da vida...[ref. 2, p. 38.]

O segundo contexto refere-se a “espíritos” produzidos em transformações químicas, e que são “incoercíveis”, isto é, tendem a escapar do recipiente em que foram produzidos. Trata-se da própria idéia de gas silvestre (“selvagem”) proposta por Van Helmont.

O Gás...ou espírito incoercível, com os fumos ou realgares manifestos que se erguem da dissolução dos corpos, especialmente minerais, golpeiam assim os tenros espiráculos dos espagiristas que trabalham incessantemente...[ref. 2, pp. 63 – 64.]

A acolhida ou a rejeição do conceito de gás nesse período parece estar relacionada ao fardo das teorias helmontianas que o termo carregava sobre si. A absoluta necessidade do novo termo somente pode ser compreendida levando-se em consideração o conjunto da filosofia química de Van Helmont. Thomson, ao restringir-se na maior parte do tempo às idéias de gás como causa material de doenças, ou como um tipo de “espírito vital” presente no sangue, esquiva-se de discutir aspectos mais relacionados à estrutura da matéria. Assim, esse conceito nem de longe tem a mesma importância em sua obra se comparada à de Van Helmont.

A análise das obras de Thomson nos revela um autor que tem um profundo conhecimento da obra de Van Helmont, e uma excelente compreensão das por vezes obscuras teorias propostas pelo médico belga. No entanto, quase nada há de original na obra de Thomson em relação à obra de seu mestre. Por vezes, os escritos de Thomson revelam-se explicações mais claras das idéias helmontianas, ou aplicações das teorias de forma mais compreensível – mas que pouco, ou nada, acrescentam em termos de originalidade.

Referências:

  1. G. Thomson, Loimotomia, London, Nath. Crouch, 1666.

  2. -----, Aimatiasis, London, Nath. Crouch, 1670.

(FAPESP)