A universidade pública e a formação de professores – Artigo 02

A universidade pública e a formação de professores: uma boa notícia na pandemia

Ana Cláudia Kasseboehmer

Professora do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC/USP)

A pandemia da COVID-19 está forçando todas as pessoas a passarem por algum tipo de dificuldade. Há aqueles que perderam pessoas queridas, ficaram doentes e com sequelas, perderam seus empregos ou estão apreensivos com medo de ainda passar por algum desses infortúnios. Mesmo aqueles que puderam migrar suas atividades para o formato online e seguem vivos, com saúde e trabalhando também provavelmente passaram por uma série de emoções. Já ficaram ansiosos por estarem reclusos em casa, descansaram do tempo em que corriam de um lado para o outro na rua, cansaram-se de trabalhar e descansar no mesmo espaço e várias outras enxurradas de emoções pelas quais provavelmente todos nós devemos ainda estar passando nesse momento.

Soma-se a isso, a irresponsabilidade de quem deveria ser a principal figura política do Brasil na condução da emergência sanitária e as suas consequências nos campos social, educacional e econômico e que pode despertar na maioria das pessoas emoções de tristeza e de raiva.

Esta situação complexa e diferente de qualquer outro contexto que já tenhamos passado também promove várias oportunidades de reflexão. Recentemente – nas minhas raras e breves saídas de casa – passei em frente à Santa Casa de Misericórdia de São Carlos e me dei conta da quantidade de profissionais que estão se arriscando diariamente para cuidar das outras pessoas. Desde o início da pandemia, mesmo conhecendo muito pouco sobre o que estava por vir, diversos administradores, funcionários de limpeza, enfermeiros, técnicos e médicos seguiram trabalhando e se expondo a um vírus letal para cumprir com suas obrigações e seguir nos cuidados daqueles que procuram os hospitais e locais de saúde.

Uma vez que não é sequer ético o profissional de uma área meter-se na rotina e nas especificidades de outra área de atuação, vou limitar-me a deixar o meu muito obrigada a todos e todas da chamada “linha de frente” que atuam diariamente no combate à pandemia. Acrescento que sigo as recomendações desses profissionais e adoto todas as medidas de higiene e aguardo minha vacina. Não procuro alternativas a essas recomendações. Mas vou utilizar este espaço para destacar a atuação de outros profissionais que por amor ao que fazem, ao seu público e ao país também seguem trabalhando em situações até insalubres: os profissionais da Educação.

Valorizar a Educação não é o forte dos governantes brasileiros. Historicamente, as políticas educacionais serviram muito mais como estratégia ou para acalmar a população e evitar revoluções armadas ou para fazer da população uma massa de manobra que não consegue se mobilizar para protestar ou perceber o poder do voto para promover mudanças [1].

Os profissionais da Educação Básica estão bem familiarizados com a falta de valorização e de orientação por parte dos governos estaduais que mudam os currículos, os materiais didáticos e as exigências das metas a serem alcançadas sem perguntar àqueles que estão diariamente nas salas de aula o que funciona, o que não; como eles gostariam e o que eles precisam para trabalhar. Agora na pandemia alguns Estados se destacaram por forçarem a volta às aulas mesmo que as recomendações dos cientistas e médicos sejam a de lockdown.

Nesse contexto, escolhi utilizar este espaço para compartilhar a experiência do Projeto EducAção. O principal motivo para esta escolha é que acredito que precisamos urgentemente de boas notícias. O outro motivo é reafirmar a importância da universidade pública como espaço de produção de novos conhecimentos, de formação de novos profissionais e de promoção de mudanças na sociedade.

A literatura sobre formação de professores defende já há muitos anos que, especialmente a formação inicial, ou seja, o ensino superior em nível de graduação, precisa se alicerçar sobre um tripé: professor universitário / professor da Educação Básica / licenciandos [2-4].

Quando esta articulação não é forte, a formação do futuro professor fica deficiente, especialmente a parte que insere o estudante em sua futura área de atuação, o estágio supervisionado. Isso porque se professor universitário e o da Educação Básica não estão entrosados, o licenciando precisa “sair em busca” de uma escola que aceite que ele cumpra sua carga horária de estágio lá. Sem uma união entre ambos os espaços formativos não é difícil imaginar que o professor da Educação Básica pode não querer ter alguém seguindo-o em suas aulas; e que o estudante da Educação Básica pode não entender por que aparecem outros sujeitos para atuarem como professores. Ainda que esses problemas não sejam dos mais graves e que um diálogo inicial entre o professor universitário e o da escola possa resolver, existem outros desafios pedagógicos menos triviais. Os licenciandos preparam planos de aula na universidade para exercitarem a incorporação das inovações pedagógicas e das questões teóricas abordadas ao longo do curso e da disciplina de estágio. No entanto, é muito difícil coincidir o tema do plano de aula preparado pelo licenciando e o conceito que está sendo abordado pelo professor na escola já que diferenças no calendário, no ritmo das salas e outras adversidades interferem no planejamento do professor. Há também as diferenças na própria forma como o professor da turma e o licenciando atuam ao ensinarem o que gera uma quebra no ritmo do ensino e não torna a experiência da regência e do estágio como um todo algo real frente ao que espera esse futuro professor.

Existem sim algumas experiências de sucesso entre grupos de Ensino de Química e a Educação Básica no Brasil [5,6]. No entanto, essa articulação entre universidade e professores da Educação Básica não é fácil e se ainda não existe não é falta de esforço de ambas as partes. Eu já tinha perdido as contas das estratégias que tentei para criar esse vínculo: ofereci cursos de formação continuada junto à Diretoria de Ensino da minha região; submeti projetos de pesquisa junto ao Programa Ensino Público da FAPESP e várias outras tentativas.

Em 2014, iniciamos um projeto financiado pela FAPESP [7] na qual produzimos palestras interativas para explicar em uma linguagem acessível a estudantes de ensino médio algumas das pesquisas desenvolvidas no Instituto de Química de São Carlos (IQSC). Este é um exemplo de como um projeto de pesquisa pode levar a resultados mensuráveis – artigos científicos, trabalhos para congressos, etc. – e resultados não mensuráveis. Nesse projeto, conheci a Professora Patrícia e seu desejo de interagir com a universidade e buscar soluções para os problemas de ensino e de aprendizagem por meio da pesquisa. Eu ainda insisti um pouco mais e fiquei submetendo cursos à Diretoria de Ensino – para contribuir para a progressão na carreira do professor – e projetos à FAPESP – para oferecer bolsa – para efetivar essa parceria.

Demorou, mas eu entendi que grande parte dos professores não está nessa profissão pelo que pode “ganhar”. Essa concepção capitalista e econômica está arraigada em nossa forma de pensar e não nos damos conta de que muitos profissionais – os de saúde, os da educação – não trabalham por dinheiro, mas porque têm um ideal ou um projeto de país. O que move muitas pessoas é a compaixão e o desejo de ver o outro bem, seja de saúde ou seja porque cresceu na vida por meio da Educação.

Em 2019, iniciamos um grupo de estudos e de pesquisa com três professoras, duas licenciandas e uma professora universitária. As reuniões ocorriam no IQSC e a pauta das reuniões era definida a partir de dificuldades e anseios de cada uma. A pandemia afetou também esta atividade e ficamos alguns meses sem nos reunirmos, esperando que essa situação não fosse durar muito.

No segundo semestre de 2020, resolvemos retomar as reuniões agora no modo remoto e a boa notícia é que o distanciamento imposto pela pandemia facilitou a promoção de reuniões no formato online. A possibilidade de realizar reuniões sem a necessidade de deslocamento físico facilitou o convite de colegas e muitos professores e professoras se interessaram pelo grupo.

Hoje o Projeto EducAção conta com dois grupos temáticos, um deles aborda o ensino por investigação e o outro a abordagem Ciência-Tecnologia-Sociedade. Aproximadamente sessenta participantes – entre professores de diferentes áreas do conhecimento e licenciandos – frequentam as reuniões assiduamente fora de seus horários de trabalho e após uma longa jornada de reuniões, planejamentos e aulas presenciais e remotas. O projeto também é financiado pela FAPESP e pela Pró-reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo [8].

Nesses encontros estamos afinando nosso diálogo, aprendendo a sincronizar os objetivos de ensino, a fala com os estudantes e o que cada um entende sobre o que é importante ensinar, quais são os meios que podem ser escolhidos para se alcançar esses objetivos e como avaliar o sucesso de nosso trabalho. Esses encontros também servem como um momento de convívio entre os pares, de reconhecer na fala do outro a dificuldade que um tem de ensinar e serve finalmente para mostrar que quem acredita em Educação não está sozinho.

É certo que um espaço como este é mais propício e mais adequado para formar o futuro professor e, para o licenciando, será muito mais fácil cumprir sua regência porque a elaboração do plano de aula poderá ser feita discutindo as teorias pedagógicas com o professor universitário e com o professor da escola. E as observações sobre a escola, a disciplina e a turma de estudantes poderão ser mais ricas porque o professor da escola e o universitário conhecerão bem a realidade que o estagiário foi observar.

Espero que esse relato possa mostrar ao leitor que também temos boas notícias para compartilhar apesar do período difícil que estamos passando. Também espero que possamos reconhecer que a universidade pública não parou e seguiu cumprindo suas diversas atribuições em diferentes níveis – contribuições para a superação da pandemia, assessoria para tomada de decisões pelos governantes, geração de novos conhecimentos, formação de profissionais de alto nível de qualificação e interação com a sociedade. Ainda, espero reforçar a fala de quem defende que o investimento nas pesquisas científicas é imprescindível para o desenvolvimento do nosso país e da nossa população.

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[1] NOSELLA, P. A formação do educador e do professor: esboço histórico-filosófico. In: NOSELLA, P.; JARDILINO, J. R. L. Os professores não erram: ensaios de História e teoria sobre a profissão de mestre. São Paulo: Pulsar, 2005, p. 23-72.

[2] FAINGOLD, N. De estagiário a especialista: construir as competências profissionais. In: PAQUAY, L. et al. Formando professores profissionais: Quais estratégias? Quais competências? 2. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. p. 119-133.

[3] PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e Docência. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2010. 296 p.

[4] FERREIRA, L. H.; KASSEBOEHMER, A. C. Formação inicial de professores de Química: a instituição formadora (re)pensando sua função social. São Carlos/SP: Pedro & João Editores, 2012. 174p.

[5] SILVA, P. S.; Mortimer, E. F. O Projeto Água em Foco como uma Proposta de Formação no PIBID. Química Nova na Escola, v. 34, p. 240-247, 2012.

[6] ZANON, L. B.; HAMES, C.; SANGIOGO, F. A. Interações em espaços de formação docente inicial na perspectiva da (re)construção do currículo escolar na modalidade de situação de estudo. Investigações em Ensino de Ciências, v. 17, p. 21-35, 2012.

[7] Processo FAPESP n. 2014/02522-7. PARRA, K. N.; KASSEBOEHMER, A. C. Palestras de divulgação científica de Química: contribuições para a crença na autoeficácia de estudantes do ensino médio. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 1, p. 205-237, 2018.

[8] Processo FAPESP n. 2017/10118-0; Programa Aprender com a Comunidade, da Pró-reitoria de Graduação da USP.