Robert Boyle e a Química Corpuscular


Luciana Zaterka (PG)

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP


palavras-chave: revolução científica, química corpuscular, experimentalismo



A maioria dos trabalhos sobre a revolução científica moderna apresenta como fio condutor as transformações ocorridas no âmbito da astronomia e da física. Os nomes aqui lembrados são sempre os mesmos: Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes, Newton e, quando muito, Bacon. A química é freqüentemente omitida. De fato, os historiadores, por muito tempo, assinalaram o desenvolvimento tardio dessa ciência quando comparado ao da astronomia, física, anatomia ou da fisiologia. Nesse sentido, a revolução química seria um fenômeno do século XVIII centrado em Lavoisier e seus colaboradores. Para estes pensadores, foi o estudo dos gases, após 1740, que forneceu à química um solo conceptual que permitiu as explicações das reações em termos de átomos e elementos. Os argumentos que fundamentam essa visão historiográfica seguem a interpretação do historiador Herbert Butterfield, segundo a qual: "esta foi uma revolução postergada por depender de uma apreensão maior do poder de quantificação, do surgimento da química pneumática e sobretudo da reação contra a teoria do flogisto". Fica claro que o cerne do argumento aqui utilizado tem como paradigma as ciências físicas: o progresso na quantificação como um requisito para qualquer interpretação da revolução científica.

Por outro lado, alguns poucos historiadores da ciência acreditam que, para uma melhor compreensão das mudanças ocorridas na revolução científica, é necessária uma abordagem que tenha também como preocupação a 'estrutura da matéria'. Assim, Prof. Allen Debus propõe que para o entendimento da revolução científica em sua totalidade devemos incluir alguns aspectos relacionados à história da medicina e da química: "O que estou sugerindo é que tornemos parte integral de nosso entendimento da revolução química, em primeiro lugar, a evolução médico-química dos séculos XVI e XVII e, em segundo lugar, o conflito entre mecanicistas, químicos e vitalistas no início do século XVIII. Ao fazer isso, seremos capazes de reparar uma interpretação há muito equivocada, que tem confinado a revolução química essencialmente à segunda metade do século XVIII". Noutra direção vai a historiadora da ciência Marie Boas Hall, que aponta o lugar de destaque que Robert Boyle teve no pensamento científico do século XVII, principalmente por ele ter tornado a química parte integrante da física. Nesse sentido, haveria um retorno ao paradigma anterior, isto é, tentaríamos compreender a revolução científica exclusivamente tendo em vista as transformações das ciências físicas.

Ora, a revolução científica refere-se à filosofia natural como um todo, aí incluídas as futuras ciências particulares (química, biologia, física, astronomia, etc.). Contudo, os comentadores possuem a tendência de identificar filosofia natural e física. É dentro desse contexto que propomos um estudo da química de Robert Boyle. Para tanto examinaremos um pequeno tratado escrito em 1660: A physico chymical essay containing an experiment with some considerations touching the differing parts and redintegration of salt-petre, ou simplesmente o "Ensaio do Nitro". Neste nosso químico apresenta como o salitre (KNO3) pode ser decomposto pelo fogo em espírito de nitro e nitro fixo e, ainda, como essas partes podem se recombinar para formar novamente a substância original. Dessa maneira, Boyle acreditava que o salitre era uma substância heterogênea constituída por duas substâncias com propriedades físicas e químicas absolutamente distintas. Ora, se a reintegração era possível, a filosofia corpuscular de Boyle mostrava que os corpúsculos permanecem inalterados durante as reações químicas, destruindo com a teoria das formas substanciais.

Assim, parece que nosso filósofo pretende incorporar a química no contexto da nova filosofia natural e derrubar com a visão, que então predominava, da química como uma ciência oculta, mística, excessivamente simbólica, ou seja, com a teoria aristotélica e paracelsista acerca da estrutura da matéria: "mas como eu cultivei a química... não para multiplicar processos ou ganhar reputação com eles, mas para servir para a fundação, e outros materiais úteis para uma história da natureza experimental, no qual uma sólida teoria pode no decorrer do tempo ser construída". Aqui percebemos a forte influência que Bacon exerceu no projeto boyleano. De fato no prefácio de seus Physiological Essays, Boyle observa: "alguns homens podem somente conhecer a natureza, outros desejam comandá-la", e enquanto a filosofia teórica é suficiente para a primeira, a filosofia experimental - tendo a química como fio condutor - é o caminho para se atingir o domínio da natureza. Dessa maneira, pretendemos discutir, através do Ensaio do Nitro, como a proposta corpuscular de Boyle fornece elementos para se repensar o lugar da química na revolução científica do século XVII.



-BOYLE, Robert. (1772) The works of the honourable Robert Boyle, ed. Thomas Birch (6 vols.), Londres.

-BOAS, Marie. (1965) Robert Boyle on natural philosophy (an essay with selections from his writings). Bloomington, Indiana University Press.

-BUTTERFIELD, Herbert. (1992) As origens da ciência moderna. Lisboa, Edições 70.

-DEBUS, Allen. (1978) Man and Nature in the Renaissance. Cambridge, Cambridge University Press.


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