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Liberação da 'Pílula do Câncer' expõe atropelo da ciência pela política

Relatório do INCT/INOFAR indica presença de substâncias desconhecidas pelos fabricantes e peso menor que o informado

Na semana passada a novela da fosfoetanolamina sintética, chamada popularmente de "Pílula do Câncer", teve um novo capítulo com a sanção presidencial à lei que permite seu uso. A "Pílula do Câncer" é o resultado de uma pesquisa conduzida desde os anos 90, que passou a ser produzida no laboratório da USP de São Carlos, sem que houvesse passado pelos testes que são padrão no caminho de qualquer substância se tornar um fármaco de verdade.

"Sancionar esta lei é uma decisão insensata e sem fundamento. A substância não passou pelos ensaios clínicos exigidos pela legislação. Em vez disso, foi impulsionada pelo entusiasmo de parte da população, que acredita que a pílula seja capaz de curar todos os tipos de câncer - algo inviável do ponto de vista científico e médico", afirma o Prof. Adriano D. Andricopulo, presidente da SBQ, pesquisador com amplo trabalho na área de fármacos. 

O conteúdo da pílula e seus efeitos estão sendo estudados pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT/INOFAR), coordenado pelo Prof. Eliezer Barreiro, do Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas (Lassbio), da UFRJ. "Recebemos a missão do MCTI de realizar um diagnóstico de qualidade com relação ao conteúdo da pílula. Na primeira etapa, já concluída, foram inequivocamente identificados, caracterizados e quantificados os componentes dessa mistura", explica Barreiro. "Sabemos também que o peso alegado de 500mg por cápsula varia significativamente e que a fosfoetanolamiina sintética corresponde a 32% do conteúdo da pílula, no máximo". 

A primeira fase de testes químicos foi coordenada pelo Professor Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Unicamp. O Laboratório de Química Orgânica e Sintética, coordenado por Dias, é uma das principais referências em síntese de orgânica no Pais, com contribuições mundialmente reconhecidas na área de doenças negligenciadas. 

"Acreditávamos que havia apenas fosfoetanolamina no grau de pureza informado pelo grupo do IQSC-USP. Para nossa surpresa encontramos fosfoetanolamina, mas não como descrita pelo fabricante, e mais quatro substâncias que não deveriam estar lá", descreve o Professor Dias. Ele isolou e sintetizou os componentes da mistura de forma a possibilitar conhecer suas características e efeitos, tanto isoladamente como na mistura. 

Suas conclusões foram publicadas em um relatório enviado ao MCTI (veja link no final da matéria) e contestadas pelos fabricantes. "Eles dizem que nós degradamos o material, o que não é verdade. Talvez eles nem saibam mesmo o que está dentro das pílulas", afirma. 

A segunda etapa da pesquisa está sendo conduzida pela equipe do Professor João Batista Calixto, diretor do Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP), criado por iniciativa do Governo Federal, com apoio do governo do Estado de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Fundação CERTI. "Em linhas gerais, os estudos do Professor Calixto vão determinar fatores de absorção e o comportamento das substâncias que compõem a pílula e depois entender seus efeitos nas células e a toxicidade", explica Barreiro, do INCT/INOFAR. Segundo ele o relatório desta etapa deve ser encaminhado em breve ao MCTI. 

A "Pílula do Câncer" nunca havia sido testada antes por grupos de pesquisa interessados em suas qualidades científicas. À margem da regulamentação da atividade científica e médica no Brasil, ela surgiu de pesquisas do químico Gilberto Chierice, professor e pesquisador aposentado do Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros da USP São Carlos e começou a ser distribuída a pacientes com câncer sem o conhecimento da Instituição. 

Ganhou fama quando depoimentos de supostas curas começaram a chegar às redes sociais, junto com relatos de óbitos. A polêmica chegou ao ambiente científico, a produção foi suspensa, Chierice foi denunciado pela USP por curandeirismo, e juízes começaram a conceder liminares determinando o fornecimento da substância. O MCTI então encomendou ao INCT/INOFAR a pesquisa coordenada pelo Professor Eliezer. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se manifestou veementemente contra a liberação da "Pílula do Câncer". 

"A sanção dessa nova lei, não observando os procedimentos técnicos e científicos, e ignorando os fundamentos regulatórios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), abre um perigoso precedente. Um pesquisador que acredite ter encontrado uma substância com um efeito benéfico qualquer poderá tentar seguir o mesmo caminho, colocando em risco todo um sistema de regulação que tem como objetivo proteger a população e oferecer medicamentos seguros, que realmente forneçam benefícios terapêuticos", alerta o Professor Andricopulo, presidente da SBQ. 

Leia nesta edição do boletim o resumo do relatório técnico-científico sobre cápsulas de fosfoetanolamina, resultante do trabalho coordenado pelos Professores Luiz Carlos Dias e Eliezer Barreiro. 

O Boletim Eletrônico da SBQ irá acompanhar a questão e trazer informações relevantes sobre a questão da fosfoetanolamina quando pertinente. 

Para saber mais: 

Relatório completo do Prof. Luiz Carlos Dias e equipe 
Esclarecimento da USP São Carlos
Depoimento do médico Dráuzio Varella sobre o uso da fosfoetanolamina
Entrevista com Gilberto Chierice concedida em 14/04/2016 para a Rádio Difusora de Criciuma
Entrevista com Presidente da Anvisa, publicada em 14/04/2016 pela Agência Brasil
Matéria veiculada no Fantástico, em 10/04/2016 – Rede Globo de Televisão 

Sobre quem estuda a fosfoetanolamina: 

INCT/Inofar
Lassbio UFRJ
Cienp UFSC 
IQ/Unicamp

Texto: Mario Henrique Viana (assessor de imprensa da SBQ)