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O direito da Ciência negado - Artigo 01

O DIREITO À CIÊNCIA NEGADO

(ou por que foi tão fácil fechar as universidades diante da pandemia de COVID-19?)

Amadeu Moura Bego

Professor do Instituto de Química da Unesp – câmpus de Araraquara

Atualmente atua como professor visitante na Harvard Graduate School of Education.

 

Não faz muito tempo, a atriz Denise Fraga escreveu um artigo intitulado “Química, pra que te quero?” que foi publicado na Folha de São Paulo[i]. O argumento principal de Denise começa a ser construído a partir da constatação de seu desinteresse pela Química quando estudante e o fato de que este mesmo desinteresse acometia recentemente seus filhos. Esse argumento se desenvolve com as indagações da atriz em torno da real necessidade de todas as disciplinas comporem o currículo escolar para todos os alunos a despeito de suas disposições e motivações. Partindo desse preâmbulo, seu argumento se apresenta claramente da seguinte forma: “Podemos saber de tudo navegando por aí. Tanto pra aprender! E quem nos ensina a escolher o que queremos saber? Não poderíamos gastar o tempo de Química 3 com algo relacionado ao autoconhecimento e à capacidade seletiva e deixar as cadeias de carbono e hidrogênio pra quem realmente precisasse delas?”. Por fim, Fraga arremata seu argumento afirmando que, se o objetivo fosse desenvolver o raciocínio dos estudantes, a Química poderia ser substituída, por exemplo, por mais agradáveis e eficientes aulas de xadrez.

Lembro-me que, na época, o artigo gerou uma intensa polêmica no país, sobretudo com discussões acaloradas nas redes sociais. Rendeu, ainda, diversas respostas formais, como o brilhante artigo do Professor Aldo Zarbin intitulado “Química: como te quero!”[ii], e a forte manifestação oficial da Sociedade Brasileira de Química[iii]. De minha parte, como educador químico, o artigo da atriz resultou em diversas atividades didáticas, incluindo a produção de um frutífero estudo de caso[iv] que utilizo em minhas aulas até hoje.

Em que pese sua patente fragilidade, percebe-se que este mesmo argumento constitui basicamente o cerne da atual Reforma do Ensino Médio[v]. Em linhas gerais, ao dividir o currículo em duas partes - a Base Nacional Comum Curricular obrigatória e uma parte flexível - e tornar compulsórias apenas as disciplinas de português e matemática nos cinco diferentes itinerários formativos, o argumento que se apresenta é o de que nem todas as disciplinas são de interesse para todos os estudantes[vi]. Ou, parafraseando Denise, deixemos as cadeias de carbono e hidrogênio para quem realmente precise delas!

Neste ponto do texto, você pode estar se questionando sobre qual a conexão entre essa discussão e a atual pandemia de COVID-19. Peço apenas um pouco de paciência. Chegaremos lá. Antes, precisaremos passar pelo importante debate da relação entre o currículo escolar e o ensino de ciências.

A literatura especializada, há muito tempo, tem se debruçado sobre as intrincadas dimensões do currículo escolar. Dentre essas amplas altercações, há aquelas sobre as justificativas para a inserção de determinada área do conhecimento no currículo. Lembre que, no Brasil, as ciências da natureza, no geral, e a química, em particular, só passaram a compor oficialmente o currículo do nível secundário na década de 1930[vii].

De modo sintético, reúno aqui cinco grandes argumentos apresentados na literatura[viii] acerca das justificativas para a inserção das ciências no currículo escolar.

argumento econômico se baseia na importância de treinar indivíduos especializados técnica e cientificamente a fim de atender às demandas de uma sociedade industrial. O argumento utilitarista defende que os conhecimentos científicos são necessários para guiar decisões e ações práticas do dia a dia. O argumento social aponta para o grande distanciamento ocorrido entre os avanços científicos e a cultura geral, sendo que somente sua compreensão pela população aumentaria tanto a simpatia como os investimentos em ciência e tecnologia. O argumento cultural se fundamenta no preceito de que o conhecimento científico se constitui em um dos principais bens culturais produzidos pela sociedade moderna e que, por isso, qualquer indivíduo só poderia ser considerado completamente educado com sua apreensão. Por fim, o argumento democrático sustenta que a aprendizagem de ciências fornece instrumentos intelectuais essenciais para a formação integral de futuros cidadãos a fim de que possam tanto compreender quanto se posicionar criticamente frente aos mais diversos temas sociais.

Veja que o argumento utilizado por Denise Fraga se insere, quando muito, nas categorias econômica e utilitarista, ou seja, a disciplina química só teria alguma função para aqueles que precisariam desses conhecimentos para suas atividades cotidianas. Reduzida a essas categorias, a química só faria sentido no itinerário formativo daqueles que desejassem trabalhar ou prosseguir seus estudos nas áreas que utilizam os conhecimentos químicos.

Pois bem. Passados quase seis anos da publicação do artigo de Fraga, o mundo se vê diante de uma pandemia de proporções inimagináveis e contornos trágicos. A pandemia de COVID-19 tem exigido ações complexas e coordenadas de curto prazo em diversas esferas da vida pública, desde medidas estratégicas governamentais, passando por esforços dos profissionais da área de saúde, e chegando aos hábitos diários da grande população.

Em questão de dias, as redes (locais onde “podemos saber de tudo navegando por aí”) foram inundadas por uma lista extensa de termos próprios do vocabulário científico. Vírus, bactéria, estrutura genética, corona, crescimento exponencial, progressão geométrica, modelo, camada lipídica, álcool 70%, hipoclorito de sódio, hidroxicloroquina, ensaio clínico, in vitroin vivo, reprodutibilidade, confiabilidade, dentre outros. Lidar com esse arsenal de informações demanda dar importância, valorizar e dominar o conhecimento científico. Todavia, o que se viu foi que tão rápida quanto a transmissão do coronavírus tem sido a transmissão de informações distorcidas, fake news, e propostas milagrosas das mais diversas.

Nesse contexto de pandemia, em que rápidas ações coordenadas significam salvar dezenas, centenas ou até milhares vidas, especialmente em função da brutal taxa de transmissão do vírus SARS-CoV-2, nunca fomos tão dependentes da conscientização rápida e das ações individuais das pessoas. E é exatamente aqui que pretendo desenvolver a relação entre o artigo da atriz Denise Fraga e a pandemia.

Gosto muito de utilizar a analogia dos óculos quando discuto com meus estudantes sobre a importância de aprender ciências (embora reconheça algumas de suas limitações)[ix]. Nessa analogia, assim como os óculos são um instrumento que nos habilita a enxergar de forma mais acurada o mundo a nosso redor, a ciência nos permite ver o mundo com outras lentes. Da mesma maneira que as lentes oftálmicas têm a capacidade de refratar os raios de luz, o conhecimento científico nos forneceria a capacidade de reordenar as informações de modo a compreender o mundo com mais nitidez. No contexto dessa analogia, as pessoas que não possuem os óculos da ciência teriam apenas uma visão borrada, desfocada e dispersa sobre o mundo que as cerca.

Aqui, faço uma generalização[x] que me parece bastante apropriada. Por que foi tão fácil fechar as universidades diante da pandemia de COVID-19? Ou dito de outra forma: por que as universidades públicas foram rápidas em suspender suas atividades regulares[xi]? Partindo da premissa de que gestores e gestoras das universidades públicas são pessoas que possuem e utilizam os óculos da ciência, é possível argumentar que as consequências gravíssimas da pandemia foram prontamente reconhecidas e previstas a partir dos dados disponíveis e das projeções apontadas pelos modelos epidemiológicos. A comunidade acadêmica foi capaz de ler o mundo, estabelecer relações causais e tomar as melhores decisões de forma fundamentada a partir do conhecimento científico.

Aí está um aspecto central. Ao contrário do que possa sugerir uma concepção estruturalista, o raciocínio científico não é uma habilidade genérica que uma pessoa desenvolve apenas com o treinamento do raciocínio lógico, da capacidade analítica e da aptidão para tomar decisões por intermédio de atividades, por exemplo, como o jogo de xadrez.

Como nos ensina Vigotski[xii], pensar por conceitos científicos ocorre a partir do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. A formação de conceitos científicos é resultado de uma atividade não linear complexa na qual as funções psicológicas básicas tomam parte para a posterior internalização da linguagem científica por meio de um processo socialmente mediado. Nesse processo, a colaboração entre o estudante e o professor (adulto) é inestimável para a produção de significado e para o ato de generalização.

É por meio do processo de escolarização formal, então, que se faculta a um indivíduo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, uma vez que esse desenvolvimento não espontâneo só ocorre à medida em que esse indivíduo se intelectualiza. Voltando à nossa analogia, caberia à escola, por meio da instrução formal, fornecer os óculos e ensinar os estudantes a como utilizá-los adequadamente para enxergar o mundo a seu redor com mais nitidez e clareza.

Assim, o argumento que se apresenta é o de que ensinar ciências às futuras gerações é dever do Estado. Não se trata apenas de fornecer informações específicas de caráter utilitarista ou econômico para nossas crianças e jovens. Trata-se de democratizar um legado cultural produzido historicamente pela humanidade ao longo de séculos. Um legado essencial para o desenvolvimento humano integral de nossas futuras gerações, capacitando e habilitando os indivíduos a poderem, de fato, compreender, participar, interferir e transformar nossa sociedade. Aprender química e ciências, antes de tudo, é um direito que todo brasileiro e brasileira deve ter garantido!

Assistindo atônito aos acontecimentos das últimas semanas em nosso país, percebo claramente o quanto nossa gente vem sistemática e reiteradamente tendo seu direito à ciência negado. Que ciência já foi apresentada à esmagadora parte da população? Que condições foram dadas para que essas pessoas se apropriassem dos rudimentos das ciências? A constatação óbvia é a de que nossos(as) irmãs e irmãos ficam, portanto, míopes, desorientados, humilhados, à mercê de toda sorte de charlatões e crápulas.

Nossa tarefa enquanto educadores científicos é hercúlea. Principalmente nesse momento em que o conhecimento científico tem sido diária e reiteradamente vilipendiado pela autoridade máxima do país. O que, indubitavelmente, mostra que algumas de nossas lideranças políticas não utilizam e desprezam a importância dos óculos da ciência para compreender a realidade e, funestamente, não gostam de quem os utiliza e querem democratizar seu uso. Mas ninguém nunca disse que seria fácil... Precisamos nos unir e agir rapidamente.

 


[i] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/denisefraga/2014/08/1494462-quimica-pra-que-te-quero.shtml. Acesso em: 12 abr. 2020.

[ii] Disponível: http://www.jornaldaciencia.org.br/quimica-como-te-quero/. Acesso em 15 abr. 2020.

[iii] Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/respostaquebramanifestacao-da-sociedade-brasileira-de-quimica-em-resposta-a-coluna-de-denise-fraga-da-folha-de-sao-paulo-de-382014/. Acesso em 12 abr. 2020.

[iv] MORALLES, V. A.; BEGO, A. M. Estudar Química para quê? Um Estudo de Caso para discutir a importância do conhecimento químico para alunos do Ensino Médio. In: XVI EVEQ, 2018, ARARAQUARA. Anais do XVI EVEQ, 2018.

[v] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm. Acessado em: 12 abr. 2020.

[vi] Sem entrar no mérito da discussão sobre as implicações de caráter político e socioeconômico dessa proposta.

[vii] ROMANELLI, O. O. História da educação no Brasil (1930/1973). 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.

[viii] Para uma discussão mais fundamentada, ver: OSBORNE, J.; HENNESSY, S. Literature Review in Science Education and the Role of ICT: Promise, Problems and Future Directions. London: Futurelab, 2003.

[ix] Uma das limitações se refere a reduzir o processo comunicacional ao modelo de emissor-receptor. Outra seria comparar, no exemplo, as pessoas que enxergam bem sem óculos sempre como “alguém que não sabe ciências”. Para uma discussão fantástica sobre o uso de analogias no ensino, ver: GLYNN, S.M. Explaining Science Concepts: A Teaching-With-Analogies Model. In: S.W. Glynn, R.H. Yeany and B.K. Britton (Eds.) The Psychology of Learning Science. Hilsdalle, New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1991, p. 219-240. 

[x] Como toda generalização, sei que corro o risco de simplificar algumas dimensões, mas ressalto ao leitor que a utilizo com caráter didático, não como uma abstração sociológica.

[xi] Os primeiros relatos de suspensão das atividades datam do dia 12 de março: https://www.poder360.com.br/brasil/universidades-publicas-e-privadas-suspendem-aulas-por-novo-coronavirus/. Acessado em: 13 abr. 2020.

[xii] Vygotsky, L. Pensamento e linguagem. 3.ed. São Paulo: M. Fontes, 1991.