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A tradição familiar de Manssour Fraga pela busca de melhores medicamentos

Químico medicinal falará na 38ª. RASBQ sobre os avanços recentes no desenvolvimento de novos fármacos multialvo

 

"A meu ver é preciso uma completa reformulação na forma que se ensina, especialmente no ensino médio, quando a única preocupação do aluno é passar no ENEM, sem ter qualquer relevância o quanto ele sabe. É preciso valorizar, ainda no ensino médio, as aulas experimentais, que no caso da Química, da Física e da Biologia, são essenciais para fixar um determinado conhecimento teórico e estimular vocações."

Ele lembra em detalhes até hoje das conversas que tinha com o pai, décadas atrás, um Prático de Farmácia, apaixonado, que lhe ensinava os segredos dos poderes curativos de tinturas, extratos e seus princípios ativos. Pode se dizer que o professor Carlos Alberto Manssour Fraga tomou o bastão da tradição familiar e foi além. Nos últimos 20 anos ele tem buscado novos candidatos a fármacos cada vez mais eficientes, sobretudo para as chamadas doenças multifatoriais, como câncer, doença de Alzheimer, asma brônquica, artrite reumatóide, dor neuropática, diabetes, hipertensão, entre várias outras. 

Em sua conferência na 38ª. Reunião Anual da SBQ, a ser realizada de 25 a 28 de maio, em Águas de Lindóia (SP), o Professor Fraga vai abordar os avanços recentes no desenvolvimento destes fármacos que desempenham mais de uma tarefa desejada, os chamados fármacos multialvo. 

"Após a elucidação do genoma humano muito se avançou na caracterização das redes de interação farmacológica entre alvos de diferentes vias bioquímicas relacionadas à gênese de uma mesma doença", explica Fraga. "Hoje acredita-se que o uso de fármacos multialvo, planejados de maneira a apresentar numa única arquitetura molecular os requisitos estruturais para modular mais de um alvo molecular envolvido na gênese da doença, represente uma abordagem mais moderna e mais eficaz para tratar estas disfunções." 

Fraga graduou-se em Farmácia em 1988 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde obteve também o mestrado e o doutorado, concluído em 1994. Dá aulas no Instituto de Ciências Biomédicas e é vice-coordenador do Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas (LASSBio®), onde conduz diversas linhas de pesquisa relacionadas aos novos fármacos multialvo. 

O professor Carlos Alberto Manssour Fraga conversou com o Boletim da SBQ

O que significa a abordagem "uma doença – múltiplos alvos"? 
Até certo tempo se apostava que a melhor estratégia para se tratar umadeterminada doença seria buscar medicamentos que pudesse atuar de forma seletiva em um único alvo molecular (usualmente uma proteína capaz de controlar uma determinada via bioquímica do nosso organismo ou desempenhar mecanismos de amplificação da sinalização celular) relacionado ao aparecimento da doença por alguma forma de descontrole de seu funcionamento. 
Esta seletividade evita o fármaco (princípio ativo presente no medicamento) apresente efeitos adversos decorrentes da capacidade de interagir com outros alvos moleculares não relacionados a gênese de uma determinada doença e cujo funcionamento se encontra normal. Entretanto, após a elucidação do genoma humano muito se avançou na caracterização das redes de interação farmacológica entre alvos de diferentes vias bioquímicas relacionadas à gênese de uma mesma doença. Estas interligações tornam o tratamento de uma doença multifatorial, isto é, que envolve a participação de múltiplos alvos, muito pouco eficiente quando se empregam fármacos que atuam em apenas um alvo molecular, em função de mecanismosmútuos de inter-regulação, que levam à exacerbação de uma via bioquímica compensatória, que não permite o completo controle do quadro patológico instalado. 
Por esta razão, acredita-se que o uso de fármacos multialvo, planejados de maneira a apresentar numa única arquitetura molecular os requisitos estruturais para modular mais de um alvo molecular envolvido na gênese da doença, represente uma abordagem mais moderna e mais eficaz para tratar estas disfunções. São alguns exemplos de doenças multifatoriais, a asma brônquica, a artrite reumatóide, a dor neuropática, o câncer, o diabetes, a hipertensão, a esquizofrenia, a depressão, a doença de Alzheimer entre várias outras. 

Pode se dizer que, em suas pesquisas, os fármacos desenvolvidos têm origem em moléculas já conhecidas, que passam por "melhorias"? Estes novos fármacos se baseiam em moléculas que ocorrem em que tipos de organismos na natureza? 
Não, os compostos testados são todos de origem sintética, a despeito de em alguns casos explorarmos produtos naturais abundantes no Brasil, como o safrol, obtido da Pimenta Longa, como matéria-prima para preparar os novos protótipos candidatos a fármacos que planejamos. Os compostos são planejados com base na estrutura dos respectivos biorreceptores ondeesperamos que eles atuem, explorando diferentes técnicas de modelagem molecular, ou explorando a intuição química associada a diferentes ferramentas de modificação molecular da Química Medicinal como a hibridação molecular. 
Neste caso, podemos identificar os requisitos farmacofóricos (aqueles essenciais para a interação com o biorreceptor alvo) de ligantes previamente descritos na literatura que atuam individualmentecomo moduladores (inibidor/ativador ou agonista/antagonista) de dois ou mais diferentes receptores e usamos a hibridação molecular para construir estruturas híbridas capazes atuar simultaneamente em mais de um biorreceptor. Obviamente, que nesta etapa de planejamento estrutural o conhecimento do Químico Medicinal é indispensável para a escolha da arquitetura molecular ideal de forma a adequar suas propriedades farmacocinéticas, isto é relacionadas aos processos de absorção, distribuição, metabolismo e excreção, minimizar os eventuais problemas de toxicidade e maximizar suas propriedades farmacodinâmicas. 

Como foi o começo e o desenvolvimento dessa linha de pesquisa? 
O Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas (LASSBio®) completou 20 anos de existência em 2014, e desde a sua criação tem dedicado esforços para a identificação de protótipos candidatos a fármacos de ação dupla, muitos relacionados a alvos moleculares (enzimas e/ou biorreceptores) relacionados a autacóides bioformados pela cascata do ácido araquidônico. Entretanto, o divisor de águas para este novo paradigma acontecer em meados da década passada, quando nosso grupo propôs a definição de "Fármacos Simbióticos" (Fraga & Barreiro, 2008), isto é fármacos que atuam em mais de um alvo molecular relacionado à gênese da mesma doença, mas que pertencem a vias bioquímicas diferentes e cuja modulação simultânea resulta em ação sinérgica e consequente aumento da eficácia do fármaco. Esta abordagem é especialmente importante no desenvolvimento de fármacos para tratar doenças multifatoriais e para o controle de doenças infecciosas ou do câncer, a fim de se minimizar o impacto da eventual resistência adquirida com o uso contínuo de um determinado quimioterápico. 
Desde então o LASSBio® tem feito várias contribuições científicas relatando a invenção de fármacos simbióticos eficazes no controle de modelos animais reproduzem diferentes doenças multifatoriais. Em termos conceituais um ligante multialvo pode ser identificado pela avaliação de sua eficácia nos respectivos alvos moleculares in vitro, enquanto que a caracterização de um protótipo simbiótico depende de modelos farmacológicos mais complexos, capazes de avaliar o sinergismo resultante da modulação dos alvos moleculares eleitos. 

Qual a distância efetiva de suas conquistas mais recentes e a industrialização dos novos fármacos? 
A despeito do Brasil não ter tradição na invenção de novos fármacos, eu creio que a lacunas que atrapalham o processo de desenvolvimento de novos fármacos vem sendo cada vez menores, e de fato já existem relatos de empresas nacionais que lançaram fármacos inovadores no mercado farmacêutico nos últimos anos. Creio que as pesquisas realizadas no Brasil até a fase de identificação e desenvolvimento pré-clínico de novos protótipos candidatos a fármacos já se encontra relativamente bem consolidada. Mas ainda temos barreiras que interferem como a nossa capacidade de inovar. A questão da produção e tempo até concessão de patentes é uma delas. Cabe destacar que, pelo fato do fármaco ser um bem industrial, ter uma política de estímulo a proteção intelectual é fundamental para tornar viável o interesse da iniciativa privada. Por outro lado, nossas legislações que regulamentam as parcerias público-privadas precisam ser revistas e adequadas, de modo a facilitar que as Empresas se aproximem da Academia, ainda nos estágios mais iniciais do processo de desenvolvimento de um novo candidato a fármaco, sem que obrigatoriamente tenha que participar de processos licitatórios para ter privilégio sobre um produto que ela ajudou a construir. 
Mas a despeito destes entraves, como disse antes, creio que estamos cada vez mais próximos de lograr êxito na invenção de um fármaco desenvolvido no Brasil. O LASSBio® tem uma série de parcerias com Empresas Farmacêuticas Brasileiras e Multinacionais e um candidato a fármaco multialvo que segue rumo a Fase Clínica I para tratar uma doença cardiovascular multifatorial. 

O que é preciso para estimular mais jovens para o estudo das Ciências? 
A meu ver é preciso uma completa reformulação na forma que se ensina, especialmente no ensino médio, quando a única preocupação do aluno é passar no ENEM, sem ter qualquer relevância o quanto ele sabe. Ou seja, funciona como um adestramento; nossos alunos são treinados para passar, sem se valorizar e aguçar a curiosidade científica e o conhecimento profundo de temas do passado e do presente, estimulando a sua capacidade de criar um senso crítico. 
É preciso valorizar, ainda no ensino médio, as aulas experimentais, que no caso da Química, da Física e da Biologia, são essenciais para fixar um determinado conhecimento teórico e estimular vocações. Outra importante iniciativa que visa compensar esta limitação das escolas de hoje, transferindo a responsabilidade para as Universidades, diz respeito as bolsas de PIBIC-EM, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica que tem como objetivo tornar mais precoce o contato de alunos do Ensino Médio com diferentes projetos e atividades científicas desenvolvidas nas Universidades, em diferentes áreas. 

Como começou a sua paixão pelas ciências e a Química? 
Minha paixão pela ciência começou ainda na infância, fascinado com as histórias que meu pai "Prático de Farmácia" que conhecia como poucos os mistérios e a magia da Farmácia Magistral de outrora, me contava a respeito da manipulação dos princípios ativos com poder curativo. Esta magia sempre me fascinou e das conversas longas com meu pai, explicando a um jovem menino como as substâncias, extratos, tinturas de diferentes formulações farmacêuticas desempenhavam sua função terapêutica, sem dúvida alguma despertaram minha vocação para as Ciências Farmacêuticas. 
Após ingressar no curso de Farmácia na Universidade Federal do Rio de Janeiro foram muitas disciplinas cursadas de diferentes áreas, passando pela Álgebra linear, Cálculos, Físicas, até aquelas relacionadas às Ciências Biológicas, Biomédicas e mais especificamente as Ciências Farmacêuticas, mas minha grande paixão continuava sendo a Química, fascinado pelo desafio de compreender como arranjos moleculares particulares eram capazes de produzir ou modular determinada resposta biológica. 
Este fascínio me levou a dedicar meus estudos de Mestrado e Doutorado na área da Química Medicinal e a escolher esta área para pesquisar e ensinar após me tornar Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Para saber mais: 
http://www.farmacia.ufrj.br/lassbio/

Livro Sugerido

Química Medicinal: As Bases Moleculares da Ação dos Fármacos”, E. J. Barreiro, C. A. M. Fraga, Artmed Porto Alegre 2015, pp. 1-590.

Artigos Sugeridos

“Beneficial effectsof a novel agonistoftheadenosine A2A receptor onmonocrotaline-inducedpulmonaryhypertension in rats”, A. K. N. Alencar, S. L. Pereira, T. L. Montagnoli, R. C. Maia, A. E. Kümmerle, S. S. Landgraf, C. Caruso-Neves, E. B. Ferraz, R. Tesch, J. H. M. Nascimento, C. M. R. Santanna, C. A. M. Fraga, E. J. L. Barreiro, R. T. Sudo, G. Zapata-Sudo,British JournalofPharmacology 2013169, 953−962.

“Design, Synthesis, and Pharmacological Evaluation ofN-Acylhydrazones and Novel Conformationally Constrained Compounds as Selective and Potent Orally Active Phosphodiesterase-4 Inhibitors”, A. E. Kümmerle, M. Schmitt, S. V. S. Cardozo, C. Lugnier, P. Villa, A. B. Lopes, N. C. Romeiro, H. Justiniano, M. A. Martins, C. A. M. Fraga, J. J. Bourguignon, E. J. Barreiro, Journal of Medicinal Chemistry2012,55, 7525−7545.

“Discovery of novel orally active anti-inflammatory N-phenylpyrazolyl-N-glycinylhydrazone”, R. B. Lacerda, L. L. Da-Silva, C. K. F. Lima, E. Miguez, A. L. P. Miranda, S. Laufer, E. J. Barreiro, C. A. M. Fraga, Plos One 20127, e46925.

“Structure-Based Design and Biological Profile of (E)-N-(4-Nitrobenzylidene)-2-naphthohydrazide, a Novel Small Molecule Inhibitor of IkB Kinase-β”, C.M. Avila, A.B. Lopes, L.L. Da-Silva, N.C. Romeiro, A.L.P. Miranda, C.M.R. Santanna, E.J. Barreiro, C.A.M. Fraga, European Journal of Medicinal Chemistry 201146, 1245−1253.

“The methylation Effect in Medicinal Chemistry”, E. J. Barreiro, A. E. Kummerle, C. A. M. Fraga, Chemical Reviews 2011111, 5215−5246.

 

Texto: Mario Henrique Viana (Assessoria de Imprensa da SBQ)

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